sábado, 31 de outubro de 2009

MST e as Laranjas

esse e outro post da

Mrs.Schlossinger


O MST é detestado por todos: da direita ruralista à esquerda chavista,
passando por tucanos, petistas, psolentos, verdes, azuis e amarelos. Mesmo
os que fingem apoiar o MST o detestam.


Isso porque há uma antipatia ancestral e inata contra o MST, esse arquétipo
de nosso inconsciente coletivo, esse cancro irremovível que insiste em nos
lembrar, mesmo nos períodos de bonança, que fomos o último país do mundo a
abolir a escravidão e continuamos sendo uma porcaria de nação que jamais fez
a reforma agrária.


O MST é o espelho que reflete o que não queremos ver.


Há duas questões, na vida nacional, que contradizem qualquer discurso
político da boca pra fora e revelam qual é, mesmo, de verdade, a tendência
ideologica de cada um de nós, brasileiros: a violência urbana e o MST.
Diante deles, aqueles que até ontem pareciam ser os mais democráticos e
politicamente esclarecidos passam a defender que se toque fogo nas favelas,
que se mate de vez esse bando de baderneiros do campo, PORRA, CARAJO,
MIERDA, MALDITOS DIREITOS HUMANOS!


O MST nos faz atentar para o fato de que em cada um de nós há um Esteban de A
Casa dos Espíritos; há o ditador, cuja existência atravessa os séculos, de
que nos fala Gabriel García Márquez em O Outono do Patriarca; há os traços
irremovíveis de nossa patriarcalidade latinoamericana, que indistingue sexo,
raça, faixa etária ou classe social:


O MST é o negro amarrado no tronco, que chicoteamos com prazer e volúpia.


O MST é Canudos redivivo e atomizado em pleno século XXI.


O MST é a Geni da música do Chico Buarque - boa pra apanhar, feita pra
cuspir – com a diferença de que, para frustração de nossa maledicência,
jamais se deita com o comandante do zeppelin gigante.


E, acima de tudo, O MST é um assassino de laranjas!

E ainda que as laranjas fossem transgênicas, corporativas, grilheiras,
estivessem podres, com fungos, corrimento, caspa e mau hálito, eles têm de
pagar pela chacina cítrica! Chega de impunidade! Como o João Dória Jr.,
cansei!


Jornalismo pungente

Afinal, foi tudo registrado em imagens – e imagens, como sabemos, não
mentem. Estas, por sua vez, foram exibidas numa reportagem pungente do
Jornal Nacional - mais um grande momento da mídia brasileira -, merecedora,
no mínimo, do prêmio Pulitzer. Categoria: manipulação jornalística. Fátima
Bernardes fez aquela cara de dominatrix indignada; seu marido soergueu uma
das sobrancelhas por sob a mecha branca e, além dos litros de secreção
vaginal a inundar calcinhas em pleno sofá da sala, o gesto trouxe à tona a
verdade inextricável: os “agentes“ do MST são um bando de bárbaros.


(Para quem não viu a reportagem, informo,a bem da verdade, que ela cumpriu à
risca as regras do bom jornalismo: após uns dez minutos de imagens e
depoimentos acusando o MST, Fátima leu, com cara de quem comeu jiló com
banana verde, uma nota de 10 segundos do MST. Isso se chama, em globalês,
ouvir o outro lado.)


Desde então, setores da própria esquerda cobram do
MST sensatez, inteligência, que não dirija seu exército nuclear
assassino contra os pobres pés de laranja indefesos justo agora, que os ruralistas
tentam instalar, pela 3ª vez, como se as leis fossem uma questão de tanto
bate até que fura, uma CPI contra o movimento (afinal, é preciso investigar
porque o governo “dá” R$155 milhões a “entidades ligadas ao MST”, mesmo que
ninguém nunca venha a público esclarecer como obteve tal informação, como
chegou a esse número, que entidades são essas nem qual o grau de sua ligação
com o MST: O Incra, por exemplo, está nessa lista como ligado ao MST?).

A insensatez dos miseráveis

Ora, o MST é um movimento social nascido da miséria, da necessidade e do
desespero. Eles estão em plena luta contra uma estrutura agrária arcaica e
concentradora. Não se pode esperar sensatez de movimentos sociais da base da
pirâmide social, que lutam por um direito básico do ser humano. Pelo
contrário: é justamente a insensatez, a ousadia, a coragem de desafiar
convenções que faz do MST um dos únicos movimentos sociais de fato
transgressores na história brasileira. Pois quem só protesta de acordo com
os termos determinados pelo Poder não está protestando de fato, mas sendo
manipulado. Se os perigosos agentes vermelhos do MST tivessem sensatez,
vestiriam um terno e iriam para o Congresso fazer conchavos, não ficariam
duelando com moinhos de vento, digo, pés de laranja.

Mas é justamente por isso que o MST incomoda a tantos: ele, ao contrário de
nós, ousa desafiar as convenções: ele é o membro rebelde de nossa sociedade
que transgride o tabu e destroi o totem. Portanto, para restituição da ordem
capitalista/patriarcal e para aplacar nossa inveja reprimida, ele tem de ser
punido. Ele é o outro.
Quantos de nós já se perguntaram como é viver sob lonas e gravetos – em condições
piores do que nas piores favelas -, à beira das estradas, em lugares ermos e
remotos, sujeito a ataques noturnos repentinos dos tanto que os detestam?
Quantos já permaneceram num acampamento do MST por mais do que um dia,
observando o que comem (e, sobretudo, o que deixam de comer), o que lhes
falta, como são suas condições de vida? Poucos, muito poucos, não é mesmo? Até porque nem a sobrancelha erótica do
Bonner nem o olhar-chicote da Fátima jamais se interessaram pelo desespero
das mães procurando, aos gritos, pelos filhos enquanto o acampamento arde em
fogo às 3 da madrugada, nem pelas crianças de 3,4 anos que amanhecem coberta
de hematomas dos chutes desferidos pelos jagunços invasores, ao lado do
corpo de seus pais, assassinados covardemente pelas costas e cujo sangue
avermelha o rio.


Para estes, resta, desde sempre, a mesma cova ancestral, com palmos medidas,
como a parte que lhes cabe neste latifúndio.


Para a mídia, pés de laranja valem mais do que a vida humana, quero dizer, a
vida subumana de um miserável que cometeu a ousadia suprema de lutar para
reverter sua situação.


Mas os bárbaros, claro está, são o MST.


Por isso, haja o que houver, o MST é o culpado

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